Isto posto, confesso que com muito, muito esforço mesmo, consegui ultrapassar mais da metade do livro. Percorri atenta, costa a costa, norte ao sul dos Estados Unidos, freneticamente, vendo passar diante de meus olhos outdoors de produtos americanos. Aprendi todas as marcas de carro, caminhão, ônibus e trem dos anos 50. E cadê a “nova literatura e a aura de lirismo e transgressão” anunciados. Um pouco de Plasil para não ficar enjoada com aquela “viagem” cheia de curvas, que não chegou a lugar algum. Houve momentos risíveis com as frases de redação de criança de oito anos, narrando suas férias: “Vi pela primeira vez na minha vida meu amado rio Mississipi ...e um grande caminhão roncando, vrumm, em dois minutos parou aos solavancos para me apanhar”. Por vezes, me senti dando uma espiadinha num blog de adolescente : “desde que eu descole uma gata mansa e linda com aquele lugar delicioso entre as pernas”. Detalhe importante: o autor desta frase é Dean Moriarty, cuja “inteligência era muito mais brilhante, formal e completa, sem nada daquela intelectualidade tediosa”, segundo Sal Paradise, narrador do livro. Taí. Esta expressão “intelectualidade tediosa” desvendou o mistério. Ora, estamos falando de um livro escrito logo após a segunda guerra mundial, em que a Europa estava arrasada, em todos os sentidos. Então, a arrogância norte americana quis, a qualquer custo, migrar o pólo intelectual da Europa para os Estados Unidos. Lembrei-me, então, de um artigo do Affonso Romano de Sant’Anna, intitulado “O Roubo do Século” , onde afirma que “o vácuo da produção européia começou a ser preenchido por obras surgidas do orgulho americano estimulado pela vitória contra o nazismo. E isto se dá no bojo da guerra fria, em que obras não apenas nacionais, mas sobretudo abstratas surgiam como oposição à pobre arte figurativa comunista. As grandes corporações logo se perfilaram nessa luta estético-ideológica, a ponto de Greenberg, já em 1945, temer que a arte moderna virasse a arte de estado nos Estados Unidos. E virou”. Por isso, meus colegas universitários, não vamos fazer cara de quem está entendendo tudo, quando nos depararmos em museus com quadros onde há apenas uma tela branca emoldurada. Como disse Sant’Anna é “a síndrome do branco sobre o branco - como nos célebres quadros pintados por Malevitch . Todas as demais artes, a rigor, conheceram síndrome idêntica: chegou-se à folha em branco, ao concerto silencioso, à escultura que derrete, ao teatro sem atores”. O pessoal de marketing sabe explicar como a esperteza burguesa e o mercantilismo dos maus profissionais conseguem esta proeza de explorar a ingenuidade do público. E não é privilégio do americano – acontece em qualquer país.
Que fique bem claro que não sou antiamericana. Aprender o jogo da Poliana foi uma das melhores lições de sobrevivência que aprendi. É quando penso nos maravilhosos momentos em que li Mark Twain, Sallinger, Walt Whitman, degustando as madeleines americanas, que para mim são uns bolinhos de canela. E no acervo afetivo-musical guardo a voz de Louis Armstrong, as músicas de Gershwin e de Cole Porter. Saravá!
Muitas vezes lendo os capítulos de On the Road, pensava na sabedoria do Mestre Cartola. Sua poesia do Morro da Mangueira, que jamais foi contagiada pelos universitários num campus da Nova Inglaterra, misturada com cachaça, conseguiu a delicadeza de avisar à sua filha , quando ela “botou o pé na estrada” e caiu na vida:
Ainda é cedo amor
Mal começaste a conhecer a vida
Já anuncias a hora de partida
Sem saber mesmo o rumo que irás tomar...
Pois é , Kerouac, infelizmente a vida não está na estrada. A indústria automobilísitica tenta agora reparar os danos do aquecimento global, quando se queimou tanto combustível e borracha de pneus. Sem ufanismo, Cartola foi, além de tudo um visionário, ao pensar na energia aeólica. ....
Créditos para Leila Carrilho
2 comentários:
Bela análise crítica da Leila. Favor botar o nome completo da autora.
pc
Excelente!!!
Kerouac adolescente... Chegou bem no foco da questão, Leila.
"huahuahuahua"
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